Companheiros, gostaríamos de compartilhar com vocês mais um bom texto, que nos auxilia na reflexão do trabalho diário no campo da educação. Trata-se de um texto de Nanda Barreto, Jornalista e autora do blog Transitiva e Direta (http://transitivaedireta.blogspot.com), e que nos traz o relato de uma experiência vivida em sua infância, e como esta experiência marcou sua formação pessoal. Vale a pena ler, compartilhar e debater em suas escolas junto aos alunos, professores e demais segmentos, o sentido do tão desejado "aluno exemplar"...
Aluna exemplar?
Nanda Barreto
Isso aconteceu na primeira série, quando eu tinha sete anos, mas até hoje não me sai da memória. Era uma segunda-feira, dia em que a professora Ana Lúcia devolvia corrigidos os trabalhinhos da turma – tarefa à qual, imagino, ela se dedicava durante os finais de semana, entre um e outro afazer doméstico. O fato é que quando a segunda-feira chegava, além de levarmos o restinho de euforia do sábado e do domingo para a sala de aula, eu e meus coleguinhas éramos acometidos por essa ansiedade extra de receber as atividades já avaliadas pela professora.
Ana Lúcia era cheia de esmeros: quando algum aluno ou aluna se saía muito bem, ela desenhava estrelinhas na cabeceira da folha e escrevia coisas como “parabéns!” ou “excelente!”. Os estudantes que não correspondiam às suas expectativas, no entanto, não eram agraciados pela mais cobiçada constelação de tinta bic de todo o primário. Mas a professora Ana Lúcia era boazinha e nunca deixava de registrar frases de incentivo. “Juntos vamos melhorar o seu desempenho!” é a que eu mais lembro de ter lido ao longo do ano – não no meu próprio caderno, pois a verdade é que àquela altura eu ainda era uma “aluna exemplar”, como a direção da escola costumava repetir aos meus pais.
Naquela segunda-feira, entretanto, esse conceito de boa aluna começou a virar farelo na minha cabeça. Sentada ao lado do meu querido colega Dieguinho, eu senti – talvez pela primeira vez – aquele comichão de que “Opa! Há algo de podre no reino da Dinamarca”. O causo é que o desenho que o Dieguinho pintou não estava adequado ao gosto da professora. Tratava-se de uma reprodução mimeografada da personagem de quadrinhos Mônica, criada pelo cartunista Maurício de Souza, e a qual eu havia colorido exatamente como mandava o figurino das revistinhas: o vestido vermelho, a pele amarelada, o coelhinho de pelúcia azul.
Mas o Dieguinho não. Aos 6 anos e meio, aquele menino doce, de olhos bem azuis, sardas e um pouco baixo para a nossa idade, achou por bem subverter a ditadura das cores e pintou a sua Mônica como bem quis: um perna roxa e a outra laranja, os cabelos verdelimão, sim, por que não? E quem disse que os dois braços têm que ter a mesma tonalidade? Diferente de mim, o Dieguinho tomou o desenho livremente como um espaço para a sua própria produção artística, mas a recompensa pela ousadia foi a reprovação da professora, além de uma boa dose de gargalhadas e chacotas dos outros coleguinhas.
Eu não achei a menor graça e estava convencida de que o desenho do Dieguinho estava muito mais bonito e “correto” que o meu, uma típica “aluna exemplar”. Além de expressar-se artisticamente, ao pintar o desenho de acordo com o seu próprio senso estético, o Dieguinho estava questionando uma lógica de que “existem coisas que são assim e ponto final”. Mas a contestação não é vista com bons olhos pela escola. Ao contrário, parece que o papel central da educação é “satisfazer” a nossa criatividade, como se as interrogações tivessem que ser “sanadas” sempre com uma resposta.
Nem mesmo a professora Ana Lúcia, sem dúvida uma das mais adoráveis e empenhadas educadoras que tive, foi capaz de fazer uma análise sobre o ocorrido. Pior ainda: imagino que a própria Ana Lúcia tenha sido formada para reproduzir esses “saberes” tão universais quanto irrefletidos que definem o que é certo e errado. Naquela fatídica segunda-feira, infelizmente, quem pagou o pato por este modelo “educativo” foi o meu colega Dieguinho.
Já faz muitos anos que não o vejo e espero que, na contramão do que lhe impunha a escola, ele tenha crescido com base no seu senso crítico. Que não seja, portanto, um “home-feito”, como certamente o mundo lhe exige cotidianamente, mas que seja um homem em construção. A mim, Dieguinho ensinou que ser uma “aluna exemplar” não é seguir roteiros predeterminados.
De alguma maneira, a Mônica póspunk de pernas bicolores do meu colega Dieguinho me apontou um caminho diferente de aprendizagem. Nele, não é possível encontrar fórmulas prontas nem respostas imediatas, mas sim um vasto jardim de interrogações. Cada dúvida semeia uma curiosidade e assim se plantam novas descobertas.
Claro, não é um processo tão imediato quanto marcar um “x” na alternativa correta ou eproduzir realidades idênticas às que nos contam os gibis e outros livros de história. No entanto, pode ser que o ato de estudar tenha mais a ver com deixar-se levar por certas subjetividades e perseguir a própria inquietação intelectual do que simplesmente aceitar uma coletânea de realidades incontestáveis.
Maravilhoso texto! Não poderia ser mais apropriado neste momento em que os alunos do PEJA se preparam para o Encontro de Alunos, cujo lema deste ano é Educar para as Diversidades, contra a Desigualdade! O relato servirá como mais um material à disposição dos professores para trabalho com suas turmas, me preparação à Oficina de produção de texto. Adorei!!! Obrigada pela colaboração.
ResponderExcluirRosane, obrigada pelo comentário e o blog tem mesmo como um dos objetivos contribuir com materiais de reflexão para as escolas, nos diferentes espaços de debates! Continue acompanhando o blog e divulgue para os professores e outras escolas!!! Abç, equipe Proinape.
ResponderExcluirExcelente texto para reflexão. Parabéns a equipe do PROINAPE pelo trabalho maravilhoso nas escolas.
ResponderExcluirParabéns pela matéria e pela iniciativa fantástica do blog. Tenho muito orgulho de ter feito parte da construção da RPE e poder experienciar o trabalho interdisciplinar nas escolas. Que essa iniciativa perdure e se multiplique pelas demais CREs! Bárbara Z Haanwinckel - assistente Social - NIAC/UFRJ
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